terça-feira, 4 de maio de 2021

Busca ao Jesus Histórico. David Rubens de Souza

Breve relato das buscas  


Rudolf Bultmann: Jesus, afastamento da história

Bultmann considerava que todo movimento de reconstrução histórica da figura de Jesus era o mesmo que entrar em um beco sem saída. Para ele, a história não era algo de importância fundamental para a cristologia; bastava tão somente que Jesus existisse e que a proclamação cristã (que ele chamava de kerygma) estivesse de alguma forma baseada na pessoa de Jesus. Assim, Bultmann reduziu todo o caráter histórico da cristologia a uma única palavra “que”. Em outras palavras, somente é necessário crer “que” Jesus Cristo é o fundamento da proclamação do evangelho (ou do kerygma).
Para Bultmann, embora a cruz e a ressurreição sejam, de fato, fenômenos históricos (pois ocorreram no âmbito da história humana), devem, contudo, ser discernidos pela fé como atos divinos. No kerygma, a cruz e a ressurreição estão interligadas como o ato do juízo de Deus e o ato da salvação de Deus. São precisamente estes atos divinos que possuem um significado constante, e não o fenômeno histórico que lhes serviu de suporte. Portanto, o kerygma não se preocupa com questões históricas, mas sim em comunicar a necessidade de uma tomada de decisão por parte daqueles que ouvem a proclamação do evangelho, transferindo, assim, o momento escatológico de um passado distante para o aqui e o agora da proclamação em si: Isto significa que Jesus Cristo nos encontra no kerygma e não em outro lugar qualquer, da mesma forma que ele mesmo confrontou Paulo e o levou a uma tomada de decisão. O kerygma não é a proclamação de verdades universais ou de conceitos atemporais – quer sejam o conceito de Deus quer sejam o conceito do redentor – mas sim a proclamação de um fato histórico. Portanto, o kerygma não atua como um veículo de conceitos atemporais, nem como um mediador de informações históricas: o que é de importância decisiva é o fato de que o kerygma é o “que” de Cristo, é seu “aqui e agora”, um “aqui e agora” que se torna presente nas pessoas a quem a proclamação do evangelho se dirige.
Portanto, de acordo com Bultmann, não se deve ficar atrás do kerygma, utilizando-o como “fonte” com a finalidade de reconstituir um “Jesus histórico” acompanhado de sua “consciência messiânica”, sua “vida interior” ou seu “heroísmo”. Essa reconstituição seria apenas “Cristo segundo a carne”, algo que não existe mais. Não é o Jesus histórico, mas sim Jesus Cristo, aquele que pregamos, que é o Senhor.
Este afastamento radical da história alarmou a muitos. Como alguém poderia ter certeza de que a cristologia estava devidamente alicerçada na pessoa e na obra de Jesus Cristo? Como alguém poderia começar a checar a cristologia, se a história de Jesus era totalmente irrelevante? Para um número cada vez maior de estudiosos, pertencentes às áreas do Novo Testamento e dos estudos dogmáticos, parecia que Bultmann tinha apenas desatado um nó górdio, sem no entanto solucionar as graves questões históricas que estavam sendo debatidas.
Para Bultmann, no entanto, tudo que fosse possível ou necessário saber sobre o Jesus histórico era o fato de que (das Dass) ele existiu. Para o discípulo de Bultmann e estudioso de Novo Testamento, Gerhard Ebeling, a pessoa do Jesus histórico é a base fundamental da cristologia, e uma vez que se demonstrasse que a cristologia nada mais era do que uma interpretação equivocada do significado do Jesus histórico, isso seria o fim da cristologia. Podemos dizer que com essa afirmação, Ebeling estava expressando as preocupações que constituíram a base para uma “nova busca do Jesus histórico”.
Ebeling apontou uma falha fundamental na cristologia de Bultmann: sua total falta de abertura à investigação histórica (pois, talvez, o termo “verificação” possua uma carga semântica demasiadamente forte neste contexto). Não seria possível conceber a hipótese de que a cristologia estivesse fundamentada em um equívoco? Como podemos ter absoluta certeza de que houve um processo de transição fidedigno da pregação de Jesus para a pregação sobre Jesus? Vemos, portanto, que Ebeling elabora críticas semelhantes às de Ernst Käsemann (outro discípulo de Bultmann), porém, com um enfoque mais teológico do que puramente histórico.

A nova busca do Jesus histórico
O movimento da “nova busca do Jesus histórico” teve início com a palestra proferida por Ernst Käsemann, em outubro de 1953, sobre a questão do Jesus histórico. A total importância dessa palestra revela-se somente quando ela é vista sob a luz dos pressupostos e métodos utilizados, até esse momento, pela escola de Bultmann. Käsemann admitia que os evangelhos sinópticos são documentos primordialmente teológicos, cujas declarações teológicas muitas vezes são expressas de forma histórica. Neste ponto, ele simplesmente aderiu e recapitulou os principais axiomas da escola de Bultmann, que aqui se baseavam nas idéias de Káhler e Wrede.
Entretanto, Käsemann foi mais além, ao definir essas declarações de forma mais específica. De acordo com ele, apesar da preocupação dos evangelistas ser evidentemente de ordem teológica, eles ainda assim acreditavam que tinham acesso às informações históricas sobre Jesus de Nazaré, as quais foram expressas e incorporadas no texto dos evangelhos sinópticos. Logo, os evangelhos abrangiam tanto o kerygma quanto a narrativa histórica.
Käsemann, a partir dessa ótica, defende a necessidade de examinar uma linha de continuidade que se estabelece entre a pregação de Jesus e a pregação sobre Jesus. Existe uma descontinuidade evidente entre o Jesus terreno e o Cristo exaltado e proclamado; contudo, uma linha contínua os ligava mutuamente, pois o Cristo proclamado já se encontrava de certa forma presente no Jesus histórico.
Käsemann não está sugerindo que devamos empreender uma nova busca do Jesus histórico, com a exclusiva finalidade de fornecer uma legitimação histórica para o kerygma. Muito menos teve ele a intenção de sugerir que a descontinuidade existente entre o Jesus histórico e o Cristo proclamado requeria uma desconstrução do último nos termos do primeiro. Antes, Käsemann estava destacando o fato de as declarações teológicas sobre a identidade do Jesus terreno e do Cristo exaltado encontrarem-se historicamente alicerçadas nos atos e na pregação de Jesus de Nazaré.
Conforme ele alega, o enunciado teológico depende da demonstração histórica de que o kerygma concernente a Jesus ou à proclamação do evangelho já existia de uma forma embrionária no ministério de Jesus. Portanto, uma vez que o kerygma contém certos elementos de caráter histórico, a busca da relação entre o Jesus histórico e o Cristo da fé torna-se algo perfeitamente adequado e necessário.
No entanto, ficará evidente que a “nova busca do Jesus histórico” apresenta uma diferença qualitativa em relação à desacreditada busca empreendida no século XIX. O argumento principal de Käsemann baseia-se no reconhecimento de que a descontinuidade existente entre o Jesus da história e o Cristo da fé não implica, necessariamente, o fato de que sejam duas pessoas completamente diferentes, não havendo qualquer relação entre o primeiro e o último. Antes, é possível reconhecer o kerygma nas ações e na pregação de Jesus de Nazaré, o que demonstra a existência de uma continuidade entre a pregação de Jesus e a pregação sobre Jesus. Enquanto a busca anterior assumia a existência de uma descontinuidade entre o Jesus da história e o Cristo da fé, que implicava no reconhecimento deste último como uma ficção que precisava ser reconstituída à luz da investigação histórica objetiva, Käsemann ressaltava que esta reconstituição não era necessária, nem possível. A noção crescente acerca da importância deste ponto levou ao surgimento de um forte interesse na questão das raízes históricas do kerygma. Quatro correntes importantes devem ser destacadas:
1- Joaquim Jeremias, provavelmente o representante da posição mais radical nesse debate, parecia sugerir que a base da fé cristã encontrava-se naquilo que Jesus efetivamente havia dito e feito, à medida que isso pudesse ser definido pela pesquisa teológica. Assim, a primeira parte de sua obra, Teologia do Novo Testamento, foi totalmente dedicada à “proclamação de Jesus” como o elemento central da teologia do Novo Testamento.
2- O próprio Käsemann situou a linha de continuidade existente entre o Jesus histórico e o Cristo kerygmático em suas declarações comuns sobre a chegada do escatológico reino de Deus. Tanto na pregação de Jesus quanto no kerygma da igreja primitiva o tema da vinda do reino de Deus é central.
3- Como vimos anteriormente, Gerhard Ebeling situava essa linha de continuidade na idéia da “fé de Jesus” – que ele concebia como análoga à “fé de Abraão” (descrita em Rm 4) – uma fé prototípica, paradigmática, que fora historicamente exemplificada e incorporada por Jesus de Nazaré e que era proclamada aos fiéis contemporâneos como algo possível.
4- Günter Bornkamm ressaltava de forma mais específica a evidente nota de autoridade presente no ministério de Jesus. Em Jesus, a realidade de Deus confronta a humanidade e a desafia a tomar uma decisão radical. Enquanto Bultmann situava a essência da pregação de Jesus na vinda futura do reino de Deus, Bornkamm trouxe esta ênfase do futuro para o confronto presente dos indivíduos com Deus, por intermédio da pessoa de Jesus. Tanto no ministério de Jesus quanto na proclamação sobre Jesus o tema do “confronto com Deus” é evidente, o que estabelece uma importante ligação de ordem teológica e histórica entre o Jesus terreno e o Cristo proclamado.
Dessa forma, vemos que a “nova busca do Jesus histórico” estava voltada para uma ênfase sobre a questão da continuidade existente entre o Jesus da história e o Cristo da fé. Enquanto a “busca anterior” tinha como principal objetivo a desconstituição do perfil de Cristo construído pelo Novo Testamento, a “nova busca” acabou por consolidá-lo, ao destacar as continuidades existentes entre a pregação do próprio Jesus e a pregação da igreja sobre Jesus.
Desde então, tem havido novos progressos nesse campo. Nas décadas de 1970 e 1980, o foco da atenção voltou-se em particular para a exploração da relação existente entre Jesus e o contexto em que ele viveu, o judaísmo do século I. Esta corrente, particularmente associada a nomes como os dos escritores inglês e estadounidense, Geza Vermes e E. P. Sanders, renovou o interesse pela origem judaica de Jesus, enfatizando ainda mais a importância da história em relação à cristologia. A abordagem de Bultmann – que desvaloriza o peso da história para a cristologia – é descartada por muitos, ao menos nesse período. Isso pode ser notado pelo novo interesse na figura do “Jesus histórico”, tradicionalmente associado ao movimento que veio a ser posteriormente conhecido como a “terceira busca”.

     A terceira busca do Jesus histórico
Desde o fracasso generalizado da “nova busca”, na década de 1960, surgiram diversas obras dedicadas à reavaliação da figura do Jesus histórico. A expressão “a terceira busca” enquadra-se geralmente nesta categoria. Essa designação tem sido questionada por vários autores, que destacam o fato de que as obras e os estudos definidos sob esta expressão não possuem tanto em comum para que possam ser assim classificados. Apenas como exemplo, podemos citar a questão de que alguns dos autores pertencentes a esse grupo apelam em suas análises a fontes estranhas ao Novo Testamento, em especial ao Evangelho cóptico de Tomás, ao passo que outros autores se restringem em suas análises ao material do Novo Testamento, em particular aos evangelhos sinópticos. Apesar dessa restrição, parece que a expressão tem obtido uma aceitação crescente, sendo apropriado, portanto, sua inclusão em nossa análise.
A “busca original” abordava as estórias de Jesus à luz de uma série de pressupostos intensamente ligados ao racionalismo, herdados do Iluminismo, os quais eliminavam a dimensão do milagre nas narrativas dos evangelhos. A “nova busca” tinha a tendência de concentrar-se nas palavras de Jesus, destacando a continuidade existente entre a pregação do próprio Jesus e a proclamação sobre Jesus registrada no Novo Testamento. A “terceira busca” parece se concentrar na questão da relação entre Jesus e seu contexto judaico como fator indicativo do caráter particular de sua missão, de sua visão e de seus propósitos. Dentre as contribuições mais significativas à “terceira busca”, devemos destacar as seguintes:
1- John Dominic Crossan, que defende a tese de que Jesus foi essencialmente um pobre camponês judeu cujo interesse especial era desafiar as estruturas de poder que dominavam a sociedade de sua época. Em suas obras, O Jesus histórico (1991) e Jesus: uma biografia revolucionária (1994), este autor alega que Jesus rompeu com as convenções sociais dominantes, especialmente ao assentar-se com pecadores e pessoas marginalizadas pela sociedade.
2- Marcus L. Borg, nas obras Jesus: uma nova visão (1988) e Meeríng Encontrando Jesus novamente pela primeira vez (1994), sugere que Jesus fora um filósofo subversivo empenhado em renovar o judaísmo, de forma que veio a representar um grande desafio à elite religiosa dominante.
3- Burton L. Mack, em suas obras, Mito da inocência (1988) e O Evangelho perdido (1993), defende que Jesus foi um filósofo individualista que seguia os padrões do cinismo de Antístenes de Atenas. Como tal, isto é, como um “cínico filósofo helenista”, Jesus tinha pouco interesse por questões específicas do judaísmo (como o local do templo, ou a posição da lei); antes, dedicava-se a identificar e escarnecer das convenções estabelecidas pela sociedade de seu tempo.
4- E. P. Sanders insiste que Jesus deve ser visto como um profeta que se preocupava com a restauração do povo judeu. Em obras como Jesus e o judaísmo (1985) e A figura histórica de Jesus (1993), Sanders sugere que Jesus previra a restauração escatológica de Israel. Deus pusera um fim ao presente século e inaugurara uma nova ordem, centrada em um novo templo, em que o próprio Jesus agia como representante e Deus.
5- N. T. Wright, na série As origens cristãs e questão de Deus, faz uma apropriação crítica da abordagem de Sanders, ao mesmo tempo em que mantém a noção de que a vinda de Cristo introduzira algo totalmente inédito, em especial em relação à identidade do povo de Deus.
Os dois primeiros volumes dessa série – O Novo Testamento e o povo de Deus (1992) e Jesus e a vitória de Deus (1996) – são, geralmente, consideradas obras das mais relevantes na área dos recentes estudos do Novo Testamento.
Nesta breve análise da obra de alguns autores representantes da “terceira busca”, fica evidente a ausência de um núcleo teológico ou histórico coerente nesta corrente. Existe grande divergência quanto à possibilidade de Jesus ser visto em confronto com um contexto judeu ou helênico; acerca da atitude de Jesus frente à lei judaica e às instituições religiosas; quanto à visão de Jesus sobre o futuro de Israel; e o que Jesus significava em relação a esse futuro. Entretanto, essa expressão alcançou ao menos um certo grau de aceitação, apesar de suas falhas, e é provável que permaneça como parte integrante da discussão acadêmica a respeito deste importante tema.


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